O Som dos Anos 30: Como os pioneiros transformaram a indústria do entretenimento

Fernando Marques
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Ilustração do leitor em Washington D.C. a ler o convite junto ao Tardis 


Comecemos com um exercício no campo da fantasia: Imagine que aceita a proposta de embarcar numa viagem no tempo a bordo da máquina espaciotemporal Tardis, que o transporta diretamente para os anos fervilhantes da década de 1930. Agora, imagine-se segurando um convite formal, ornamentado e elegante, para assistir a uma das primeiras demonstrações públicas de um sistema de entretenimento revolucionário, concebido para encher auditórios com sons jamais ouvidos. Encontra-se agora em frente do Constitution Hall em Washington D.C. na noite de 27 de Abril de 1933.


Texto de Miguel Gomes, LunaeMons Research*


Ao entrar no imponente auditório, dirige-se ao seu lugar na Mezzanine, enquanto para lá caminha os murmúrios da multidão cessam, as luzes diminuem de intensidade ao ponto de apenas deixarem percetíveis os perfis dos vultos à sua volta, o silêncio expectante é quebrado por um som avassalador. Um foco intenso mostra um diminuto Stokowski manipulando os controlos a partir de uma caixa na parte traseira do salão. A mais de 300km de distância, numa sala de ensaios em Filadélfia, o co-maestro Alexander Smallens dirige uma pequena orquestra de músicos. No recinto em Washington o som é reproduzido “em direto” por um amplificador a válvulas single ended com uns avassaladores 4 Watts de potência de 3 canais ligados a um conjunto de 3 grandes altifalantes de corneta estrategicamente colocados no palco da grande sala, um sistema recentemente desenvolvido nos laboratórios da Western Electric. “As clímaces foram esmagadoras para o público..." Assim descreveu um repórter do New York Times que esteve presente, incapaz de conter o entusiasmo. 


O Dr. Stokowski, mestre dos sons invisíveis, ajustava cuidadosamente os interruptores, orquestrando um espetáculo auditivo que fazia a orquestra soar como um exército de músicos, multiplicando-se em potência e emoção. 



Esquema descritivo da disposição do sistema de som demonstrado no Constitution Hall em Washington D.C. na noite de 27 de Abril de 1933.


Preparativos para a noite da demonstração, montagem da estrutura de suporte ao sistema de som no palco do Constitution Hall

Durante o espetáculo, a audiência ouviu uma cena transmitida de Pensilvânia para Washington. No lado esquerdo do palco em Filadélfia, um carpinteiro construía uma caixa com um martelo e uma serra. No extremo direito, outro trabalhador fazia sugestões ao seu colega. “O efeito foi tão realista que para a audiência a cena parecia estar a acontecer no palco à sua frente. Não só os sons de serrar, martelar e falar foram fielmente reproduzidos, mas a perspetiva auditiva permitiu aos ouvintes colocar cada som nas suas posições corretas e seguir os movimentos dos atores pelos seus passos e vozes”, escreveu um observador. Em seguida, uma soprano cantou “Coming Through the Rye” enquanto se movia pelo palco em Filadélfia. No Constitution Hall, o fantasma da sua voz “parecia estar a passear no palco.” O programa prosseguiu com a orquestra remota a tocar Tocata e Fuga em Ré menor de Bach, a Sinfonia n.º 5 de Beethoven, o Prelúdio à Tarde de um Fauno de Debussy, e no final o Götterdämmerung de Wagner. A ERPI providenciou acompanhamento visual. O espetáculo culminou com um duelo inesquecível entre dois trompetistas: um em Filadélfia e outro no recinto. 


“Aos presentes na audiência, parecia haver um trompetista em cada lado do palco à sua frente. No fim, quando o palco foi iluminado é que perceberam que apenas um dos trompetistas estava presente pessoalmente, toda a gente ficou de boca aberta” escreveria nas suas memórias, já no final do século XX, Harvey Fletcher, presidente fundador da Acoustical Society, e líder deste projeto dentro dos laboratórios da Western Electric.


As críticas foram na maioria extremamente positivas. O New York Times escreveu sobre a performance daquela noite: “As clímaces foram esmagadoras para o público. O Dr. Stokowski supervisionou a interpretação da invisível orquestra sob a direção do Sr. Smallens. A voz da cantora de ópera elevou-se sobre os instrumentos. Com a mão nos interruptores, o Dr. Stokowski conseguiu obter o efeito desejado, de modo que mesmo sem amplificação audível a orquestra soou como se tivesse mais do que a fundação habitual fornecida pelos baixos e tubas usuais. Os músicos presentes ficaram muito impressionados com o espetáculo. Na construção dos crescendos até às clímaces, parecia como se um exército de 100 homens estivesse a tocar..."


Marian Anderson canta no palco do Constitution Hall na noite de 7 de Janeiro de 1943. Um de uma série de concertos para apoio do Army Emergency Relief Fund


O sistema que impressionou o público naquela noite de 1933 havia sido criado meticulosamente nos laboratórios da Western Electric (um departamento dentro do conglomerado gigante da Bell Labs, que havia crescido graças à invenção do telefone) em esforços contínuos nas décadas anteriores, bebendo da experiência de criação de sistemas telefónicos e sistemas de “public addressing” (ou PA, um termo que curiosamente ficou ligado a sistemas de som profissionais, mesmo um século depois). 


Calibrar as posições dos microfones em Filadélfia e a configuração do conjunto de altifalantes em Washington levou meses. Grande parte da teoria da perspetiva auditiva estava definida, mas a execução exigiu muita improvisação e tentativa e erro. Originalmente, era para haver nove altifalantes no palco, dispostos numa matriz de três por três, criando uma “parede de som”. Mas Fletcher e os seus engenheiros perceberam que apenas três altifalantes horizontais seriam necessários. Numa entrevista recordou: “Bem, éramos apenas suficientemente ingénuos para percebermos que no palco as pessoas não saltam para cima e para baixo... talvez para algo como o fantasma de Hamlet, seria adequado ter os altifalantes a funcionar na vertical.”


Os altifalantes demonstrados naquela noite eram uma invenção especial. Baseados num estudo durante a temporada de ensaios pelos engenheiros Wente e Thuras, os altifalantes foram concebidos para ter uma enorme corneta para transmitir sons de baixa frequência, com duas cornetas de alta frequência posicionadas no topo. Isto foi inspirado pela descoberta de Wente e Thuras de que os sons de baixa frequência eram menos direcionados espacialmente do que os sons de alta frequência, e assim, um compromisso natural no sistema de reprodução poderia ser alcançado ao permitir que os dois registos fossem transmitidos de maneiras diferentes.


Uma instalação típica de “Public Addressing” da Western Electric, década de 1920.


Os altifalantes esquerdo e direito consistiam em duas cornetas de graves com uma extensão criando uma boca de 3x3.6m, oferecendo diretividade até os 50 Hz, e quatro cornetas multicelulares para os médios e agudos, cada uma acionada por dois transdutores de compressão. O canal central consistia em uma corneta de graves, com uma boca de 3x3m, e duas cornetas multicelulares. No total, duas toneladas e meia de altifalantes foram montadas numa estrutura de ponte acima da concha da orquestra. Estima-se que 25.000 pessoas poderiam facilmente ouvir o espetáculo em qualquer ponto da sala.


Os equipamentos de análise usados para estudar as várias iterações deste sistema pelos engenheiros da equipa de Fletcher eram rudimentares pelos padrões atuais, pelo que muito foi desenvolvido “de ouvido”: testes analíticos de inteligibilidade: como contar várias vezes, por pessoas diferentes o número de palavras “entendidas” através de som reproduzido, foram criados padrões subjetivos de avaliação de sistemas de som que mediam parâmetros como “naturalidade”, “som orgânico” ou “capacidade de ilusão”, algo que hoje em dia é sobejamente criticado e confinado a audiófilos experimentalistas que renegam a análise puramente objetiva, prevalente na indústria de alta fidelidade de consumo contemporânea (curiosamente, os mesmos parâmetros de análise subjetiva ainda são hoje em dia aceites e utilizados na indústria de áudio profissional para descrever um sistema).


Uma versão reduzida da coluna central usada na demonstração no Constitution Hall



O Início da ramificação da indústria de áudio de consumo

Os esforços da segunda grande guerra haviam trazido a introdução de novos elementos em válvulas. Ao nobre tríodo (que como o nome indica, tem 3 elementos: cátodo, grelha de controle e ânodo) foi adicionada outra grelha e chamou-se ao resultado um tétrodo, e com mais uma grelha nasce o pêntodo. Um dos grandes objetivos deste exercício foi reduzir a capacitância parasítica inerente aos tríodos (também conhecida por “capacitância de Miller”), o que limitava a “largura de banda” (leia-se: “gama de frequências”) que a nobre válvula era capaz de amplificar, tornando-a impraticável para amplificação de radiofrequência. Outro objetivo foi também aumentar a potência efetiva de cada válvula trazendo consigo a promessa de ser capaz de excitar altifalantes mais compactos. A era da alta fidelidade de consumo havia começado priorizando conveniência e miniaturização em detrimento do propósito original desta corrente de desenvolvimento: naturalidade e ilusão convincente.


Assim como um camião “naturalmente” é mais eficiente na tarefa de mover toneladas de areia de um lugar para outro do que um carrinho de mão, também um grande altifalante é mais eficiente em mover grandes quantidades de ar do que um pequeno. Como Paul W. Klipsch referiu: "ainda ninguém descobriu como encolher uma onda de 32 pés” (aproximadamente 10 metros ou um comprimento de onda equivalente a uma frequência de 30Hz em condições normais de propagação).


Quando os primeiros sistemas de som amplificado apareceram, muitos músicos perderam o seu emprego. Este desenho é um exemplo dos protestos relacionados que surgiram durante este período


Claro que houve progresso na ciência dos altifalantes. Temos ímanes mais fortes e mais leves, materiais capazes de suportar maior temperatura e “stress mecânico”, melhores métodos de produção e design que nos permitem otimizar o altifalante para extensões não anteriormente possíveis. Podemos projetar altifalantes que são razoavelmente eficientes em deslocamentos de maior escala do que antes. Também temos amplificadores mais potentes que tornam possível (até certo ponto) escapar com altifalantes de baixa eficiência. Sabemos mais sobre a acústica dos altifalantes e sobre a psicoacústica, tornando possível projetar altifalantes que são preferidos pelo público em geral. Mas esses altifalantes são na sua maioria projetados com limitações inerentes ao seu tamanho e “capacidade de se enquadrarem numa sala de estar normal”.


O facto é que não existe a Lei de Moore para os altifalantes. Não há "transístor acústico" que permita miniaturizar altifalantes. Os altifalantes estão, portanto, sujeitos a restrições, como o carrinho de mão, e essas restrições não podem ser contornadas por novos materiais ou ferramentas de design. Não podemos miniaturizar o altifalante sem pagar um preço. 


Entretanto, a indústria de áudio profissional, com raízes profundas assentes nas tradições da Western Electric, permaneceu fiel aos princípios estabelecidos. Marcas como RCA, Electro-Voice, Altec e JBL continuaram a desenvolver sistemas de som que honravam a autenticidade e a qualidade sonora acima de tudo, estando inerentemente libertas das restrições de espaço impostas à indústria de áudio de consumo, continuaram a aperfeiçoar a receita original, conseguindo transdutores acústicos com maior eficiência e capazes de reproduzir uma maior gama de frequências com cada vez menor distorção. Estes sistemas, ainda hoje, são reverenciados e são sistemas que seguem reiteradamente a linha original da Western Electric que ganham todos os anos o prémio de melhor som em Munique, na convenção anual de alta fidelidade “High End Munich”.


Os primeiros sistemas de som, com altifalantes de corneta e amplificadores com circuitos muito simples a válvulas single ended, embora aparentemente rudimentares comparados aos padrões modernos, tinham uma qualidade quase mágica. Sem o ponteiro de um “standard” de medições e armados de muita ingenuidade e sensibilidade, aqueles pioneiros da Bell Labs eram livres de explorar a “reprodução da naturalidade”, e os relatos que sobreviveram de testemunhas na primeira mão são honestamente hiperbólicos por muito boas razões. 


Será fácil cair na tentação de pensar que o “primitivo” público que assistiu aquela demonstração em Washington em 1933 ficou tão impressionado porque não tinha termo de comparação: afinal encontravam-se entre as primeiras pessoas a experienciar um sistema de som de entretenimento, amplificado eletricamente, mas não nos podemos esquecer que este público estava habituado a ouvir música não amplificada em auditórios semelhantes, afinal esta era uma das principais formas de apreciar música à época… dificilmente consigo imaginar público melhor preparado para avaliar o resultado da experiência do que este.


Será também fácil associar equipamentos de som profissional a festivais de música onde o objetivo principal é atingir um volume elevado capaz de cobrir um grande recinto, longe da demanda audiófila. Eu sei em primeira mão que isto é um erro e um preconceito comum: quem nunca ouviu um amplificador single ended purista, ligado a uma grande coluna de corneta como os grandes sistemas que nos anos imediatamente anteriores à segunda grande guerra deixavam grandes públicos atónitos, não sabe o que está a perder.


*Miguel Gomes da LunaeMons Research desenha e fabrica sistemas de som em Colares, Sintra.

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