Play It Again, Yuki: João Ganho explica como criou o melhor documentário do ano

António Eduardo Marques
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João Ganho no Henry Wood Hall durante a rodagem do documentário Play It Again, Yuki
João Ganho no Henry Wood Hall durante a rodagem do documentário (foto Til Artists ©2023)

O documentário Play It Again, Yuki foi o filme que mais nos surpreendeu este ano. Não apenas por ser a primeira obra de João Ganho (um dos convidados da primeira temporada do nosso podcast), mas por ser mesmo muito bom. O realizador concedeu uma entrevista exclusiva ao Música & Som onde nos fala do filme e dos projetos na área do cinema em que já está a pensar. O filme está, pela segunda semana, em exibição no Cinema City Alvalade


M&S: João, antes de conversarmos sobre o filme precisamos de falar do "elefante na sala": como é que um sonoplasta se revela, subitamente, um realizador com uma visão madura e original? O que é que na tua profissão principal, cujo principal sentido usado é o da audição, te preparou para o cinema, onde é o olhar que mais importa?


J.G.: É uma pergunta cuja resposta se poderia tornar demasiado longa se tivéssemos espaço e se estivesse na disposição de narrar a minha vida desde a juventude, por causa das idas ao cinema com os meu pais, todos os fins-de-semana, desde os 9 ou 10 anos para ver filmes Não Aconselhável a Menores de 13 Anos! Mas vou-me cingir aos últimos vinte anos da minha vida profissional: esta nova função de realizador surgiu da frustração de, enquanto trabalhava como sonoplasta para muitos realizadores portugueses com quem colaborei, começar a aperceber-me de que tinha um conhecimento geral mais vasto e profundo do que eles daquilo que compõe um filme.


Desde a rodagem até à cópia de exibição (seja em 35 mm ou Digital Cinema Package). Obviamente que tive realizadores como o José Fonseca e Costa e o António de Macedo que só me confirmaram o imenso talento que tinham, mas quase todos os outros, para além de não terem conhecimentos e intuição do que é uma boa sonoplastia em cinema, revelaram-se parcos em termos de conhecimentos gerais. Um realizador tem de dominar eficazmente todas as várias fases do processo cinematográfico. Não estou a dizer que precisa de dominar todas as ferramentas do som, da fotografia ou da edição de imagem como domina a direção de atores ou a linguagem da câmara. Mas precisa de saber expressar-se com os seus colaboradores dominando a gíria e sabendo o que é possível (ou impossível) e o que se deve fazer em cada uma das fases. 


Um realizador tem de dominar eficazmente todas as várias fases do processo cinematográfico.


Durante muitos projetos enquanto sonoplasta, dei por mim muitas vezes a pensar em soluções de edição de imagem ou de fotografia, ou até mesmo de planificação da câmara, que os realizadores não eram capazes de discernir. Obviamente que as pensava em silêncio, mas houve algumas vezes em que as comuniquei ao realizador e rapidamente ouvia a resposta de que eu era só o sonoplasta! E preferiam ficar com o problema no filme em vez de tentar perceber a minha solução. Lembro-me de um caso flagrante, um biopic sobre uma cantora, em que, nas inúmeras cenas feitas em “playback”, nunca acertou. Tudo fora de sincronismo.

Primeiro, o realizador pensava que, depois de trancar a edição de imagem, seria da responsabilidade do sonoplasta sincronizar os “playback" à posteriori… Depois, quando lhe disse que já não se podia fazer nada nesse aspeto – não se encolhe ou estende, aqui e ali, a música para acertar com a imagem – e que ele devia remontar essas cenas utilizando “planos de fuga”, que lhe permitissem disfarçar a falta de sincronismo da actriz, como planos gerais, inserts das plateias ou até mesmo da atriz de costas, disse que não podia fazer um filme sobre uma cantora sem mostrar a personagem a cantar. Ficou uma miséria, claro: viu-se a atriz a cantar em grande-plano em flagrante “playback” e a suspensão da realidade foi quebrada porque o espetador intuitivamente percebia que aquilo não passava por real, mesmo na realidade que o filme pretende sugerir.

Yuki Rodrigues, foto Til Artists ©2025
Yuki Rodrigues, foto Til Artists ©2024

Em relação à segunda parte da tua pergunta, sempre achei que um sonoplasta que perceba do assunto acaba por ter um sentido mais apurado do ritmo do filme do que o próprio editor de imagem ou até mesmo do que o realizador! Isto porque, primeiro, o som é a ferramenta mais eficaz num filme porque é capaz de manipular o espectador de forma absolutamente irracional (é da nossa natureza humana racionalizar muito pouco o sentido da audição), segundo, porque é na sonoplastia que, inúmeras vezes, se consegue o ritmo certo de um filme. Um bom trabalho de edição de som pode resolver muitos problemas de falta de ritmo da narrativa ou até mesmo do tom geral de um filme. Neste sentido, não senti qualquer dificuldade em passar à realização e à edição de imagem pela primeira vez. E, por isso, pode-se dizer que a sonoplastia foi a base que me ensinou que é preciso fazer bem nas etapas a montante para não ter de resolver problemas em etapas posteriores.


Um bom trabalho de edição de som pode resolver muitos problemas de falta de ritmo da narrativa ou até mesmo do tom geral de um filme

 

M&S: Sou daqueles que nada sabia sobre o teu filme quando o vi pela primeira vez – entrei cético e saí rendido. Mas, sem saber nada sobre o filme e a sua temática fiquei com uma suspeita: a de que tudo terá começado quando conheceste e Yuki no contexto da edição do seu disco e, a partir daí, achas que era uma história que gostaria de contar. Foi assim? Como é que a ideia germinou e de que forma é que se transformou no filme?



J.G.: A Yuki veio ter comigo para gravar dois temas que queria inserir num espetáculo que pretendia marcar o seu regresso definitivo à música após 18 anos de interregno quase consecutivo, devido à sua estranha lesão neuro-muscular na mão direita. Esses dois temas deviam servir para a Yuki poder descansar a mão direita no decurso do espetáculo. Fui direto e honesto: logística e financeiramente não compensava gravar comigo só dois temas. E daí surgiu a ideia da Cláudia Pereira da Silva, a produtora do meu estúdio e que acabou por produzir o filme, de maximizar o investimento e os meios: porque não gravar um álbum inteiro? A Yuki aderiu rapidamente à ideia, mas para gravar maioritariamente temas de outros autores.


Eu e a Cláudia [a produtora] achámos que, dada a incapacidade de controlo total da mão direita que a Yuki continuava a ter, não se devia expor a isso. Por fim, quando descobrimos que em tempos já tinha composto, incentivámos esse seu talento, o que resultou num álbum brilhante de seis temas originais. 


Obviamente que esse foi um processo que demorou algum tempo, não obstante a composição ter sido feita em tempo recorde e de forma muito disciplinada. Tempo esse que permitiu conhecer melhor a Yuki e conversar mais sobre a sua lesão. Achei maravilhoso a resiliência e o otimismo da Yuki perante a adversidade. Talvez inconscientemente tenha visto nela o oposto do meu fatalismo crónico… E posso dizer que estava numa altura da minha vida em que precisava de “vestir” a mesma resiliência e otimismo. Em certa medida, a minha vontade de fazer o filme revestiu-se de razões terapêuticas para mim próprio. Queria descobrir onde é que a Yuki ia buscar aquela força. Não por ela, mas por mim – a arte pode realmente ser muito egoísta… [riso].


Achei maravilhoso a resiliência e o otimismo da Yuki perante a adversidade. Talvez inconscientemente tenha visto nela o oposto do meu fatalismo crónico…

 


Inicialmente, até seria um filme de 25 minutos e com um apelo promocional para o álbum, mas sem deixar de trazer para o plano principal o lado humano e o sofrimento, a resiliência e a superação da compositora e intérprete, Yuki Rodrigues. Quando as datas de gravação do álbum foram trancadas, eu e a Cláudia decidimos de imediato que uma peça crucial do pequeno filme seriam as gravações no Henry Wood Hall, em Londres. Alguma coisa ia acontecer ali durante as gravações, tanto de bom como de mau, e revelar mais sobre a Yuki e sobre o seu longo processo. Por isso, teríamos de ter uma câmara sempre a filmar desde o primeiro acorde. Curiosamente, as gravações correram de uma forma geral sem sobressaltos. Com muito descanso entre takes, o que tornou o processo muito lento, mas sempre a fluir – com a Cláudia a cronometrar constantemente os meus devaneios e os da Yuki para termos a certeza de que, em três dias, tínhamos todos os temas gravados! 

A vantagem desta fluidez no Henry Wood Hall é que a Yuki começou a sentir uma segurança que não tinha quando veio ter connosco a primeira vez. E essa segurança levou-a a falar mais abertamente sobre o que lhe tinha acontecido e dos sítios onde ia diariamente buscar força para recuperar a música que tinha subitamente desaparecido da sua vida. Depois, durante o processo de edição e mistura do álbum, já em Lisboa, e apesar de nessa altura já termos feito aquilo que julgávamos ser a coluna vertebral do pequeno filme – uma longa entrevista em casa da Yuki –, começaram os desabafos realmente reveladores do processo da Yuki: as histórias mais trágicas do seu passado e sobre os seus traumas. Quando tínhamos regressado de Londres e revisto as filmagens lá feitas, já tinha ficado com a pulga atrás da orelha de que tínhamos material demasiado bom para ficar reduzido a um filme promocional. Mas, no decorrer das sessões de edição e mistura, e porque a câmara esteve sempre a filmar, a fasquia começou a subir e comecei a ter a certeza de que as conversas que a Yuki começou a ter de forma absolutamente espontânea nos intervalos mereciam um filme maior e mais profundo.


M&S: Ao contrário do que tantas vezes, e lamentavelmente, acontece com filmes portugueses, este é um documentário sem vozes off nem 'muletas' narrativas desnecessárias: a história é contada na primeira pessoa pela principal personagem e, também, pela sua música. Aliás, basicamente não temos sequer diálogos, mas sim um monólogo narrativo que nos vai desvendando a história. Trabalhaste com a Yuki no sentido de afinar a história, ou foi sobretudo algo que surgiu de forma espontânea?


J.G.: Primeiro que tudo: adoro a voz “off” desde que traga algo mais às imagens e estabeleça um ambiente extra, como no “Apocalipse Now”, no “Blade Runner” ou no “A Idade da Inocência”. Não gosto da forma acessória como é usada na generalidade do cinema português, como que a colmatar a falta de poder narrativo e descritivo dos planos e da edição. Mas vou contar um pouco dos bastidores do “Play it Again, Yuki”.


Como a experiência da Yuki em estúdio era muito antiga e reduzida, e porque íamos para uma das mais famosas salas de gravação da Europa, por precaução propusemos à Yuki fazer um ensaio geral de gravação em sua casa duas semanas antes de Londres.


Levei equipamento de som e instalei mesmo uma pequena régie numa sala adjacente à do piano. Durante dois dias sem parar sujeitei a Yuki à rotina de uma gravação profissional em estúdio, com lançamento de takes, a Cláudia a fazer a anotação para a edição, horários rígidos e tudo o mais que acontece a sério. Foi um fim-de-semana exaustivo em que simulámos a gravação do álbum inteiro. Nem eu nem a Cláudia conhecíamos o que íamos gravar. Na altura, o álbum era composto somente por cinco temas. Quando naquele fim-de-semana ouvi pela primeira vez o tema principal que dá nome ao álbum, o “Search for Eden”, que tem 18 minutos, uma das suas variadas melodias ficou-me de imediato na cabeça. Achei lindíssima, portentosa e melancólica quanto baste. 

De repente, em pleno ensaio, veio-me à cabeça a ideia de fazer o genérico do filme com a Yuki a fazer o seu habitual “jogging” ao ritmo daquela melodia em Londres. Na semana seguinte, e depois de ouvir a melodia várias vezes, achei que estava demasiado comprida para o genérico que tinha na cabeça. Pelo telefone, dei a ouvir à Yuki os compassos que devia cortar para termos somente dois minutos e meio daquela melodia para encaixar na acção que queria filmar em Londres. A Yuki percebeu logo, fez a sua adaptação e tocou-a pelo telefone. Era exatamente aquilo! Mas não íamos alterar nada no tema original de 18 minutos. Íamos gravar um tema reduzido feito de propósito para o genérico. Em Londres, gravámos esse sexto tema logo no primeiro dia porque precisávamos da música para no dia seguinte filmar o genérico. A duração e o ritmo da melodia encaixaram perfeitamente na acção que filmei. Ficou como tinha imaginado duas semanas antes e o tema acabou for ser inserido no alinhamento do álbum como “Search for Eden - Theme”. Foi a única situação em todo o filme que “afinei” previamente com a Yuki. Tudo o resto foi, da parte da Yuki, completamente espontâneo, sem rede – embora eu soubesse muito bem até onde pretendia chegar. E, diga-se, sempre com a ajuda preciosa da Cláudia que sabia sempre colocar à Yuki a pergunta certa na altura certa – nesse aspeto, o sexo feminino é sempre muito mais hábil do que o masculino…

M&S: Há uma segunda personagem de grande importância no teu filme: a música. Podemos até argumentar que a música é a personagem principal!, porque usaste a música, não como banda sonora convencional, mas como ferramenta narrativa. Um dos feitos que mais impressiona para quem viu o filme é a precisão da edição entre a imagem e o som. Foi algo que antecipaste fazer desde o início ou, pelo contrário, que descobriste que "tinhas" que fazer ao longo da produção? Qual foi o processo e que dificuldades tiveste na sua implementação?


J.G.: A música é realmente a personagem principal, mas não porque tenha sido usada como mera ferramenta narrativa, antes porque, em última análise, o filme fala sobre uma paixão, neste caso pela arte que é a música. Por isso mesmo o processo foi o inverso: como a paixão pela música era o mote do filme e porque esta devia ser a personagem principal, decidi utilizá-la como principal ferramenta narrativa. E essa ideia surgiu quase de imediato, porque comecei a imaginar muito cedo a forma como queria contar a história da Yuki. De resto, desde a minha juventude que acho admirável e genial o trabalho de edição que o John Boorman fez no “Excalibur”, em que a imagem foi toda montada de acordo com a música de Wagner, Carl Orff e Beethoven previamente alinhada. Sempre quis trabalhar com um realizador que tivesse esta ideia para um filme, de ser convidado a fazer um alinhamento musical e dar ideias de sincronização ao editor de imagem. Como nunca encontrei, resolvi que eu próprio o ia fazer. Lá está, isto surge como resultado de não pouca frustração ao longo de décadas a trabalhar para outros.

A música é realmente a personagem principal, mas não porque tenha sido usada como mera ferramenta narrativa, antes porque, em última análise, o filme fala sobre uma paixão, neste caso pela arte que é a música.

 

Posso confessar que o processo em si era simples na minha cabeça, mas um pouco mais moroso na prática do que o processo tradicional de editar as imagens sem a constante preocupação de “acertar” com os compassos e tempo da música, porque cabe ao compositor conceber a música de forma a pontuar a ação e os planos, não ao editor.


A vantagem de estar por detrás de vários processos criativos ao logo do álbum “Search for Eden”, onde co-assinei a produção musical com a Yuki, foi conhecer de antemão a origem e o significado de cada um dos temas e até mesmo de cada melodia no interior destes. De certa forma, o álbum acaba por ser programático e expressionista – qual Sexta Sinfonia de Beethoven – onde a Yuki conta alguns momentos da sua vida e os seus sentimentos relativamente aos mesmo somente através da música. Acho que, depois de tanto tempo a ouvir a Yuki a falar da sua vida, eu e a Cláudia já reconhecíamos intuitivamente o significado de cada melodia. Portanto, a primeira coisa que me propus fazer antes de começar a edição de imagem foi um alinhamento dos temas e das várias melodias que queria usar, onde e porquê, sabendo o seu significado na história pessoal da Yuki. 

Depois o mais fácil acaba por ser acertar a edição dos planos ao tempo e aos compassos da música. Até porque ainda venho do tempo da fita analógica ou dos primeiros softwares de edição de som em que não existia forma de onda para visualizar o tempo da música. Para mim, com o hábito profissional de ouvir, rapidamente acabou por ser fácil perceber onde está o tempo da música sem precisar de olhar para um monitor de computador. O mais difícil acabou por ser a inserção dos depoimentos da Yuki no interior de uma música de fundo. Essa inserção, sempre com imagem, tinha de entrar num determinado compasso e naquele tempo exato, mas o depoimento podia ser mais longo ou mais curto do que o compasso onde eu queria sair para fazer sentido musical e não interromper uma melodia a meio. Neste caso, a solução era ir procurar nos depoimentos outro momento onde a Yuki expressasse a mesma ideia de forma mais sucinta ou mais desenvolvida. E que essa ideia estivesse de acordo com o significado pessoal do tema musical escolhido. 


Cartaz do filme Play It Again, Yuki

Foi aqui que esteve a grande dificuldade de editar todo o filme à música. Houve situações em que tive de refazer uma sequência inteira porque, embora o discurso fosse o mais correto para aquela melodia, não o conseguia encaixar de maneira nenhuma nos compassos e no tempo. Ou seja, tinha de alterar todo o conceito narrativo da sequência, recorrendo a outro tema de conversa que também estivesse de acordo com o significado da música. Andava um passo para a frente muito satisfeito com o meu feito enquanto editor de imagem para, logo a seguir, ter de recuar três ou quatro e às vezes começar tudo de novo noutro tom. Mas, no fim, quem mais beneficiou foi o ritmo do filme. Curiosamente, mesmo se o vir com o som desligado, a edição da imagem adquiriu uma fluidez e um ritmo preciso que só pode ter vindo da música, mesmo que ela não esteja a ser ouvida! Pode parecer estranho dizer isto assim, mas é daquelas coisas que acontecem e não se explicam de forma racional. O espetador sente e é isso que me interessa!


M&S: Costumamos dizer que, de uma forma geral, os filmes portugueses têm um péssimo som. E é verdade, embora as coisas tenham vindo a melhorar ao longo dos últimos anos. Como sonoplasta e profissional experiente neste campo, a que é que atribuis isto? Porque é que, tantas vezes, o som dos filmes portugueses é tão mau?


J.G.: Muito resumidamente sobre um assunto que envolve muitos fatores: falta de criatividade da parte dos realizadores que, em Portugal, continuam a olhar para a pós-produção áudio como uma etapa eminentemente técnica; falta de capacidade de distanciamento dos criativos do som, que os impede de olhar para a sua criação como espetadores, sem qualquer racionalização sobre o som e sem conseguir perceber o cômputo geral, e que, já agora, algumas soluções, apesar de terem sido morosas na sua concretização, não acrescentaram nada ao filme, bem pelo contrário – os ambientes indistintos, por exemplo, são sempre misturados demasiadamente alto em relação aos diálogos, ao que se acrescenta a música sempre misturada de forma intrusiva; e por último a incapacidade da produção na gestão dos prazos e do dinheiro – nunca há tempo suficiente para fazer uma boa pós-produção áudio porque o dinheiro foi gasto a montante em coisas que nada acrescentaram ao filme ou eram completamente acessórias.


Em Portugal, continua-se a olhar para a pós-produção áudio como uma etapa eminentemente técnica.

 

M&S: Não te limitaste a realizar o filme: os teus créditos incluem a ideia original, a cinematografia, a edição e, claro, o som. Imagino que, mesmo que tivesses tido mais dinheiro para a produção (que sabemos que não tiveste, e já lá iremos…), estas continuariam a ser áreas que farias questão de assumir. Foi importante, como primeira obra, teres tido o controlo total sobre o produto final? Imagino que, tal como o Homem Aranha, com grande poder tenhas também sentido o peso da responsabilidade…


J.G.: Sinceramente, gostava somente de ter tido uma correção de cor feita por um profissional experiente. Nesse aspeto, foi a única fase em que me senti um pouco como peixe-fora-de-água. Sabia perfeitamente os resultados que queria ter na luminosidade e na cor do filme mas, como foi a minha primeira abordagem às ferramentas de “color grading”, demorei muito tempo até conseguir o estilo de imagem que queria. Embora considere que ficou a oitenta por cento daquilo que eu pretendia, se tivesse a ajuda de um profissional rodado tinha atingido os cem por cento num quarto do tempo. E possivelmente com sugestões diferentes e quiçá melhores do que as minhas. Ficará para o próximo! 


A vantagem deste filme ser um “one-man-show” nessas áreas tem a ver precisamente com o controlo total sobre os resultados criativos e de forma imediata. Por exemplo, não imagino qualquer editor de imagem experiente a chegar com tanta exatidão aos resultados absolutamente fixos e precisos que eu queria, muito menos fazer de forma tão rápida. Não estou a vangloriar-me do meu talento na primeira vez que me dediquei à edição de imagem: a verdade é que eu já conhecia o material de cabo a rabo antes de iniciar a edição. O mesmo com a música. Nenhum editor externo teria aceitado vir para o projeto numa fase tão embrionária, a não ser que lhe pagássemos mais de um ano de trabalho a tempo inteiro só para visualizar material! Incomportável, portanto. E, se virmos bem, tendo começado a edição de imagem em Janeiro de 2024 e terminado a pós-produção áudio em Junho do mesmo ano, acho que foi um tempo de pós-produção excelente para um filme com as características de imagem de que já falámos.


Em relação à responsabilidade, ao longo de mais de três décadas de profissão tentei nunca a racionalizar durante o ato criativo. Por exemplo: em tempos fui responsável pela seleção musical e pós-produção áudio de um dos mais importantes projetos produzidos pela SIC, o Século XX Português. Graças ao diretor Emídio Rangel, que percebeu que tinha algo de especial nas mãos, o meu trabalho acabou por fazer adiar a estreia da série porque precisava de tempo para conseguir os resultados que ele começava a ver e a gostar. Continuei a trabalhar sem nunca pensar na enorme responsabilidade de ser o “culpado” por estar a protelar a estreia. A única coisa que me ia na cabeça era de que tinha a responsabilidade de continuar a estar à altura daquilo que o meu diretor continuava a defender contra prazos para estreia e contra os poderes comerciais. Na altura, como agora, pus sempre os meus instintos a comandar a concretização. E, normalmente, os meus instintos dizem: “a forma como colo dois planos, a forma como misturo um diálogo com um efeito ou a música que escolho para uma cena, vai condicionar o espectador num determinado sentido; é esse o sentido que pretendo transmitir?”. Essa é que é a responsabilidade que interessa manter na cabeça e que, pela sua natureza, está sempre presente ao longo do processo criativo, nem que seja de forma intuitiva.


M&S: Portugal nunca foi conhecido pelo apoio às artes. Apesar de tudo, há produtores que, ao longo dos anos, têm conseguido alguns apoios por parte do Estado. Como é que conseguiste montar este projeto?


J.G.: Terminadas as filmagens em Londres, batemos a algumas portas para tentar arranjar fundos para prosseguir com as filmagens em Lisboa e toda a pós-produção. Mas rapidamente percebemos que o tempo que estávamos a gastar nessa procura era tempo não utilizado naquilo que interessava: ter ideias e concretizá-las de forma célere e aproveitando o “momentum”. Por isso mesmo, continuámos a filmar por nossa conta e risco, no meio de contas para pagar e comida para pôr na mesa [risos]. Houve momentos de sufoco e, em Dezembro de 2023, após o termo das filmagens em Novembro, a minha vontade era não dar início à edição e desistir do filme. Entretanto, ainda gravei um álbum com a Orquestra Metropolitana em simultâneo. Estava frustrado pela ausência de respostas aos nossos emails a explicar a urgência em contar esta bonita história. 


Em Dezembro de 2023, após o termo das filmagens em Novembro, a minha vontade era não dar início à edição e desistir do filme.


Foi a Cláudia que disse que faríamos das tripas coração para terminar o filme porque tínhamos excelente material para contar a história que eu sempre quis e da forma como eu a tinha imaginado desde o início. E assim foi. Até por isso, tentei pôr a racionalização fora do ato da edição de imagem o mais possível: quanto mais intuitivo e espontâneo fosse, mais rápido serio o processo, com o que isso significa na redução de custos.

M&S: Agora que estreaste o teu documentário no circuito comercial e que confirmaste a sua aceitação pelo público, sentes-te motivado para outros projetos na área do cinema? Tens alguma coisa já a ganhar forma e da qual nos possas falar?


J.G.: Sim, até porque a reação dos espectadores, entre conhecidos e absolutos desconhecidos – como o Nuno Rogeiro, que disse em antena que é um documentário excecional – tem sido, com muito orgulho confesso, superlativa! E, por isso, já estamos em pré-produção do próximo documentário, embora seja muito mais complicado pô-lo de pé sem qualquer financiamento externo, sobretudo devido à logística da rodagem. Uma coisa é fazer um filme só em Santa Maria da Feira (onde a Yuki reside), Londres e Lisboa. Outra coisa é ter de filmar pelo país continental e insular e, quiçá, no estrangeiro. Será novamente um documentário sobre um tema que me é muito querido e que, de certa maneira, prossegue com as “incapacidades invisíveis” – tal como o era o “Play it Again, Yuki”.


Depois, tenho de começar a desenvolver um esboço que tenho para uma longa-metragem de ficção muito pessoal, mas longe de ser auto-biográfica, claro! Algo soturno, que possivelmente vou transformar em sessões de auto-terapia para combater o meu fatalismo crónico…


Por último, quero avançar para a comédia de animação para crianças e adultos. Com várias camadas de leitura para todos. Ao estilo dos melhores exemplos da Pixar, claro.


Os três atos já estão em esboço. Neste caso, já tenho uma ideia muito precisa de onde quero começar, o que quero desenvolver e como hei-de concluir. Mais uma vez, tem vários elementos narrativos e paixões que me são muito próximos. Como temos noção de que será impossível obter fundos para este projeto, aguardamos que a evolução da inteligência artificial nos permita pô-lo de pé com uma equipa muito reduzida. Só precisamos que essa tecnologia evolua para outro patamar e de um criativo da animação com alguma experiência e muito talento para me ajudar. Como já o encontrámos, neste momento aguardo pela tecnologia da inteligência artificial. “It’s a brave new world”, digo-o em tom fatalista [risos]…


Play It Again, Yuki está em exibição no Cinema City Alvalade, em Lisboa.



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